I lose myself inside your mouth

Eu a vi meio de longe e diversas vontades me invadiram. Eu nem me recordo do momento em que me aproximei, de tão natural. Meu excesso de fala se calou pra dar lugar à sua voz doce e alta (demais), dizendo de todas as coisas um pouco. A presença dela era estonteante, eu ficava sem fôlego, sem o que dizer - nada mais parecia interessante perto do que ela tinha pra contar. Eu me contentava em me calar, sem pretensões maiores além de absorvê-la, em cada detalhe. Ela se movimentava com clareza, se expressava com afinco, a naturalidade em ser diferente que possuía era arrebatadora.

Os cabelos curtos eram de um vermelho intenso, pelos quais não passava nem perto a vontade de desbotar. Eram tão densos e incríveis quanto o espetacular sorriso que ela me abria, de vez em quando, entremeio a inundação vocativa de nossa extensa conversa-monólogo. Ela usava roupas incompreensíveis, ou era eu quem não as podia compreender, por não tirar do pensamento a idéia de eliminá-las o mais rápido possível. Lembro-me vagamente que na meia que usava por baixo do curto shorts preto, havia um rasgo, deixando a mostra um pedaço pequeno de pele branca, como um afronte à minha racionalidade, fazendo meus olhos instintivamente desviarem sem o meu consentimento.

Nos momentos mais inoportunos, ela me atirava uma pergunta profunda como uma bomba, que vinha explodir no meu colo, desprevenidamente absorta, eu engasgava nas palavras que não conseguiam se desvencilhar e serem traduzidas em sons nas minhas cordas vocais. Talvez eu devesse, todas as vezes, ter cantado pra ela para melhor dizer, mas não, eu respondia meia boca, um pouco que não respondia, depois voltava a me calar, falida. Ela pouco se importava e mantinha o ritmo. Eu a seguia, ofegante.

Não é de se impressionar que eu tenha me apaixonado perdidamente por ela neste dia. Na loucura do relacionamento que se seguiu, eu mal tive tempo de pedi-la em namoro porque ela o fez primeiro e, como sempre, minha surpresa não foi pouca. Algum tempo depois (pouco o bastante pra eu ainda me impressionar com a profundidade das perguntas repentinas), encontrávamo-nos deitadas num tapete macio, quando me atingiu a seguinte questão: O que você faria se eu morresse? Pequei pelo excesso e pela falta de conteúdo na resposta, não soube dizer, obviamente. De todas as perguntas que ela me fez, essa me deixou mais encabulada. Sem razão, quis muito tê-la verdadeiramente respondido, como sei bem que ela merecia que fosse.

Numa bela noite de calor, guitarristas solavam incansavelmente no palco enquanto nós nos distraíamos em uma conversa de bar qualquer. De repente, não mais que de repente, no intervalo entre uma palavra e outra, ela se levantou gritando: CARALHO, ADORO ESSA MÚSICA! Arrastou-me pela mão até a pista de dança, jogou-se nos meus braços, deixando-se envolver, a música entrando pelos ouvidos, os acordes sendo a cola entre nossos corpos grudados. Nossas bocas se encontraram num momento único, um sentimento peculiar me invadiu. Minhas mãos se arriscaram pela pele macia que cobria a minha moça, delicadamente acariciei seus volumes e fui me entregando ao beijo cada vez mais completamente. Senti me invadir outra alma pela boca, entrando em mim com a mesma textura macia, quente e doce daquela língua que encontrava a minha. Daquela boca, eu ouvi as melhores palavras de toda a minha vida. Nela, se encontrava a expressão da minha moça, a forma dela de dizer da vida. Forma essa que encontrava sentido e razão em meus ouvidos, agora também em minha boca, dentro de mim. Engoli as palavras mudas que ela me disse naquele instante e as senti enchendo meu coração de vida, meu peito de sentimentos fortíssimos, formigando em meus membros, amolecendo as minhas pernas. Meu estômago gelava todo o meu tronco, enquanto eu dividia naquela boca os meus gostos de viver ao mesmo tempo em que ela me entregava os dela, desconexos e perfeitos – doce, salgado, amargo, azedo, doce, doce, doce. Quando nossos lábios se separaram, ela me mostrou os dentes naquele sorriso especial e me envolveu em um abraço quente e aconchegante. À meia luz, nossos olhos se miraram por mais algum tempo, encontrando acalanto no brilho um do outro, os cílios delicados de minha ruiva contornando o atalho para a alma que eu já havia alcançado. Havia naqueles olhares a certeza de enxergarmos, porém, muito mais além. A música acabou com os aplausos animados da platéia e a moça me disse, com alguma ternura e alguma insanidade: Já podemos voltar agora. Eu, estarrecida, boquiaberta, cheia de desejo, de amor, de paixão avassaladora, de tormenta, de tornado, respondi como sempre, sem muitas palavras, perdendo-me nas entrelinhas e não sabendo formular: Você é muito louca, menina.

Se ela morresse agora, Deus, preciso que ela saiba que eu viveria pra sempre com o gosto daquele beijo entalado na alma, numa sinestesia incompreensível e sentimentalmente confundida. Passaria meus dias procurando aquele doce noutras bocas, onde tenho certeza que não o encontraria. As palavras dela jamais sairiam de dentro de mim, e a forma com que ela se expressa, que hoje circula em mim diluída ao sangue, calmamente gravada em meu interior, engrossaria e empedraria em minhas entranhas. No meu tempo livre, procuraria a resposta pra todas as perguntas que me nocautearam, só pra não encontrá-las e me manter sempre perdida, na esperança vã de eu jamais deixar de me sentir como eu me sinto com ela por perto.